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Writer's pictureMaria ISAAC

Estantes, livros e muito pó

A Primavera.

Há quem desfrute do sol, das flores, organize o guarda-roupa, faça limpezas e, para os aficionados dos livros, é também uma boa época para tirar o pó das prateleiras mais altas e reorganizar as estantes.

Nesta estação segui a deixa da natureza e pus em alvoroço a minha pequena biblioteca caseira, com o entusiasmo, e também alguma daquela nostalgia que as mudanças sempre trazem.

Rodeada de pilhas de livros, reencontrei-me com velhos amigos, com os livros favoritos

e os injustiçados e alguns daqueles incompreendidos que todos mantemos lá por casa, embora sem sabermos bem o que pensar deles.

Neste episódio falo-te sobre estantes, livros, pó, e o quão difícil é julgar um livro, pois por mais que tente acabo sempre com aquela sensação de estar a ser injusta.



Bem-vindo!


Vamos à organização em três passos! (os meus três passos muito aldrabados)


Começo pelo mais fácil: os grandes amores de uma vida inteira:

Jorge Amado, Isabel Allende, Gabriel García Márquez, Fernando Pessoa…

Estes, e seus amigos literários igualmente geniais, estão bem aconchegados em redor da minha secretária, sempre à mão, e tem lugar cativo para todo o sempre.

Nestes livrinhos, é só passar um paninho e aproveitar para abrir numa página aleatória e reler um parágrafo que nunca falha em pôr-me um sorriso aluado, a imaginar como será conseguir escrever coisas tão maravilhosas.


Como:

“O mundo era tão recente que muitas coisas não tinham nomes, e para as mencionar era preciso apontá-las com o dedo.”

Cem anos de Solidão


Ou

“Ela não acreditava que o mundo era um vale de lágrimas, mas sim uma piada de Deus e era uma estupidez levá-la a sério.”

A Casa dos Espíritos


Pertinho destes, também estão os livros autografados de autores contemporâneos, alguns deles meus amigos do coração, porque é tão bom ter os amigos por perto.


Depois vem o trabalho braçal de movimentar a multidão de bons livros que fui lendo ao longo dos anos e que, claro, vou carregar comigo pelo resto da vida! Muitos deles, pobres coitados, perderam a juventude comigo… desbotados, amarelados, com pó tão entranhado nas lombadas que já é papel!


Mas lá continuo a passá-los de lado para lado, paninho na mão, a alinhá-los na vertical e depois a preencher os buracos vagos com os que sobram. Não há critério alfabético, nem organização de natureza nenhuma, nas minhas estantes reina o caos!


Por esta altura, obviamente, já estou consumida pela alergia ao pó, a estrebuchar com sequências de 3 a 5 espirros por minuto, e a amaldiçoar a minha decisão.


Para o fim… o terceiro passo, a maior das dores de cabeça.

Pois se até é fácil descartar a maioria dos livros que não gostei, para dar, vender… eclipsar de alguma forma… restam sempre aqueles demónios com uma história por detrás da história.

Aquele livro que foi oferecido por alguém especial, com a melhor das intenções, mas que lemos e detestamos. Não há coração para me desfazer dele, mas também… vê-lo a dividir a prateleira com o meu estimado Paul Auster, a maravilhosa Elena Ferrante… não pode!


É assim que nasce então a prateleira “longe da vista”.

Ela normalmente fica rentita ao chão e é a desgraçada que come com o pó do chão o ano todo.

Não vos vou contar quem lá está porque, como bem sabemos, os ódios de uns são os grande amores de muitos outros, e eu quero que continues a ouvir o meu podcast.


As horas passadas a reorganizar as nossas estantes são muito mais do que simplesmente arrumação e limpeza, são viagens biográficas no tempo, meditações com um pano do pó na mão…

As nossas estantes estão cheias de nostalgia e sempre que lhes tocamos reencontramo-nos com diferentes versões de nós próprios que… por incrível que pareça, em mais uma daquelas coisas mágicas dos livros, eles não nos deixam esquecer.


Basta olhar para um livro do Henry Miller para me lembrar de um verão inteiro que seguiu ao final do liceu, ver a capa do Sputnik, Meu Amor, do Murakami e volto a noites de inverno no primeiro ano da faculdade, pegar no Tigre Branco e sinto o medo na véspera da minha primeira cirurgia.


É difícil falar sobre livros destes que adorei tanto lê-los e que se tornaram marcos de memória. Não sei se também te acontece isto de… tipo, ficar meio atrapalhado com as palavras… e ser escritora não ajuda em nada, acredita, é como se tudo o que eu possa dizer não esteja à altura do que aquele livro, aquela história, significa para mim. E… quem é que se quer arriscar a ser injusto com um livro favorito!? Certo?


Mas esta dificuldade em julgar um livro, simplesmente falar sobre uma opinião sincera sobre ele, não é exclusiva dos livros de que gosto, ela existe também naqueles infelizes que não gostei de ler e me roubaram tempo de vida.


Eu sei que não estou sozinha nisto. Em conversa com amigos muitos referiram sentir a mesma coisa.


O que me leva a pensar: por que razão é tão difícil julgar um livro?

Pode reduzir-se a um gosto porque sim, ou não gosto porque não, e há quem o faça, não mata ninguém, mas parece-me injusto e simplista.


No que toca a livros que não gosto, encontrei uma forma simples que tem funcionado e é para manter. Simplesmente não falo neles. Se alguém me falar sobre livros ou autores que de não gosto, não comento, se me questionarem, a resposta vai com o mínimo de palavras possíveis. Tem funcionado!


Agora, os outros, os maravilhosos, os nossos favoritos… esses é que me continuam a atormentar.. mas … só resta ir fazendo o melhor possível, sempre que falo deles, para estar à altura do enorme significado que tiveram para mim, do que me fizeram sentir, mesmo que com aquela sensação de ficar sempre um pouco aquém, de por mais que tente não conseguir fazer-lhes justiça, de estar, um pouco atrás do que deveria ser.


Os livros da nossa vida, os favoritos que nunca sairão das nossas estantes, aqueles que nos lembram que existem palavras capazes de expressar mundo inteiros, os nossos próprios corações.


Alguém encontrou as palavras certas e escreveu-as por nós. Vemo-nos em palavras no papel, já não somos desconhecidos, solitários, incoerentes, muito menos invisíveis.

Estamos nos livros que guardamos nas nossas estantes, espalhados por histórias, a viver em personagens imortais.


Há liberdade nos livros, para experiências e emoções, para o que vivemos e sentimos, porque podemos ler-nos neles, descrever-nos, a nós, aos nossos mundos, invocar para fora de nós o que, de outra forma, esconderíamos.


Olha a tua estante, vê-te em todos os teus livros, guarda-os como um tesouro.




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