Eles são tão amados quanto odiados, os nossos queridos clássicos.
Mas uma coisa é unânime: ninguém consegue ficar indiferente aos anciãos do mundo literário.
De onde vem o nosso amor?
Talvez das histórias sussurradas por vozes doces que adormecem bebés; ou pelas inúmeras adaptações e reinterpretações de aventuras inesquecíveis e amores trágicos que nos fazem sonhar acordados até hoje.
De onde vem o nosso ódio?
Talvez de uma distância no tempo, de conflitos de linguagem, de uma coisa a que alguém decidiu chamar “leitura obrigatória” e que deveria chamar-se qualquer outra coisa.
Neste episódio vou falar-vos da leitura dos clássicos e, com a preciosa ajuda de Italo Calvino, partilhar algumas das razões pelas quais estes livros intemporais permanecem (e devem continuar a permanecer) na nossa vida.
Bem-vindo a mais um episódio!
Em episódios anteriores já tive oportunidade de partilhar um pouco sobre a minha história com os clássicos e o nosso início de relação, um pouco, custoso.
Se por acaso este é o primeiro episódio que estás a ouvir aqui no podcast, um resumo muito rápido: durante a minha adolescência, a biblioteca modesta lá da minha terrinha só tinha clássicos e portanto, mais por de falta de escolha do que por opção, fui de certa forma obrigada a entender-me com os clássicos desde cedo. Costumo chamar-lhe: um exercício de teimosia.
Hoje percebo facilmente o porquê das minhas dificuldades na leitura dos clássicos, com a sua linguagem tão elaborada e ritmo lento, lentinho.
Ainda assim, há semelhança de muitas das relações mais conturbadas que vivemos ao longo da vida, a história que partilho com estes anciões tem um final feliz, no qual o meu esforço agora me faz sentido.
E qual é esse sentido? Ou seja, porquê ler os clássicos?
A resposta é longa, mas resumo em 3 razões pelas quais continuo a lê-los:
- Cultura geral
- Janela no tempo
- Pensamento crítico
Os livros clássicos são parte da cultura geral contemporânea. Títulos como “O Crime do Padre Amaro”; “Amor de Perdição”; Orgulho e Preconceito”; “Anna Karenina” surgem em conversas do dia a dia, que nada têm que ver com literatura. E até conceitos nascidos das obras de grandes autores como Kafka. Quando alguém nos diz vivi uma situação kafkiana por exemplo, o que significa que viveu algo confuso, ilógico, absurdo.
Os clássicos integram o conhecimento geral, permitindo-nos compreender referências e consequentemente contribuindo para uma melhor interação social.
Estes livros são sempre janelas no tempo que nos levam para outras épocas, para vivermos num mundo que já não existe. Eles fomentam a compaixão pela história humana do próximo num contexto histórico, porque, o passado não é somente factos e datas; há uma permanência da dor, das dúvidas, dos desejos, desafios, uma humanidade sempre partilhada, não importa qual a data no calendário.
E de uma forma mais racional, os clássicos desafiam o nosso pensamento crítico com aquela escrita tão intrincada, e de difícil compreensão, é todo um exercício de interpretação! O meu eu de treze anos que o diga.
A intemporalidade é a grande característica dos clássicos e por isso há até quem se atreva a classificar livros contemporâneos como futuros clássicos, por verem neles antecipadamente esta característica.
Italo Calvino reuniu no livro “Porquê ler os clássicos” vários ensaios sobre os nossos estimados clássicos. Nele existe uma passagem que espelha bem a minha experiência. Ele diz-nos que:
Na juventude, pelas características da escrita destes livros, experienciamos uma espécie de luta, de impaciência na compreensão da escrita complexa, das descrições, das temáticas, uma ânsia para nos apressarmos e para chegar ao fim, às últimas páginas.
Numa outra fase mais tardia da vida, passamos a ser um pouco mais tolerantes com o tempo, e a experiência levam-nos a detetar aspetos subtis da escrita, há uma tendência a julgarmos “o que faria eu se estivesse na mesma situação” face às nossas aprendizagens pessoais e aos desafios que enfrentamos.
Italo Calvino lembra-nos como os clássicos têm um poder especial: o de permanecerem na nossa mente.
Até nas leituras menos prazerosas, estas formam uma memória mais sólida, e falamos com mais facilidade sobre o que nos fizeram sentir, é como se, por os reconhecermos como clássicos, a relação de leitor-livro é moldada por um respeito à intemporalidade, como se se tratasse de facto de alguém mais sénior, experiente e digno de consideração.
Como é fácil de imaginar, à semelhança do que acontece com a generalidade dos livros; nem todos fazem “faísca” connosco e nos apaixonam.
O que distingue os clássicos é que é impossível ficarmos indiferentes: gostar ou não? É bem mais do que isso: é amor ou ódio ou revolta, eles despertam emoções fortes!
Em incontáveis conversas sobre livros, tanto com escritores como leitores, não me recordo de uma só ocasião em que foi mencionado um clássico e alguém disse: li, mas não me lembro muito bem do que achei.
O mais comum de se ouvir é: adorei, é o livro da minha vida, ou odiei, ou nem passei das primeiras vinte páginas, adormeci, apeteceu-me queimá-lo.
Calvino pede-nos para reservarmos tempo para redescobrir os clássicos lidos na nossa juventude.
Ele também sugere que devemos manter-nos longe dos textos introdutórios que chegam até nós trazendo a aura da interpretação feita por gerações anteriores.
Segundo ele, a descoberta é uma aventura pessoal de cada leitor e por isso as sugestões de terceiros, são coisa a evitar.
Para mim, esta parte é um desafio. Eu adoro ler textos introdutórios que me orientam na leitura.. Talvez mais tarde, ainda mais tarde, eu consiga coragem para o fazer.
Amem-se ou odeiem-se os clássicos, eles são incontornáveis e é impossível ficar indiferente.
Calvino equipara-os aos antigos talismãs.
Os clássicos carregam uma herança pesada e sombria. Ela nasce no nosso tempo de escola e é até hoje chamada de “leitura obrigatória”.
Ora, quem é que algum dia na vida gostou de alguma coisa a que se chama de obrigatória!?
Há semelhança de todas as outras coisas boas, também a leitura de um clássico beneficia de ser uma decisão pessoal, e voluntária, de cada um de nós, movidos pela curiosidade.
Os clássicos são os anciões do mundo literário cujas histórias valem a pena ser lidas.
Eles preservaram a humanidade e as culturas, perdurando no tempo como uma janela para o passado, que podemos guardar nas nossas estantes, e abrir sempre que quisermos.
À semelhança das nossas interações do dia a dia, com os nossos amigos, familiares, colegas de trabalho, a diversificação enriquece-nos e precisamos de todas as histórias.
Seguir os nossos amores literários irá manter-nos entusiasmados nesta longa viagem de descobertas literárias.
Vamos ler os clássicos e os contemporâneos, ficar com o melhor de ambos.
Vamos conhecer novos escritores, portugueses e estrangeiros, ver o mundo pelos olhos deles para melhor vivermos no nosso.
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